07/07/2020: Meio-diário, meio-ensaio, meia-vida no. 1

Hoje é 7 de julho, acordei um pouco depois do que planejava em meio a sonhos estranhos, o céu está limpo. Eu deveria estar trabalhando, mas fui atravessado por um impulso de escrever sobre três experiências que eu tive recentemente nesse período de quarentena que, de certa forma se interseccionam.

No compilado “Silêncio”¹ , que apresenta uma série de textos e palestras de John Cage, famoso pela composição de 4’33”, obra que traz o aparente silêncio, ou ao caso, a ausência de notações musicais, ao centro da composição e da experiência da audição musical, o autor apresenta, em um de seus textos, o caminho percorrido até chegar nessa conclusão consolidada ao formato de uma composição.

Nesse percurso, Cage trabalhou em composições em que uma de suas características se mantinha inalterada, enquanto outras descendiam a uma semi-anarquia, ao formato de “improvisação ponderada”, conforme o mesmo expunha:

“No caso de “Sonatas e Interlúdios” (que eu terminei em quarenta e oito), apenas a estrutura era organizada um tanto grosseiramente para a obra como um todo, porém de modo preciso dentro de cada peça. O método era o da improvisação ponderada (principalmente no piano, mas ideias me vinham em alguns momentos longe do instrumento. Os materiais, as preparações do piano, eram escolhidos como se colhem conchas ao andar na praia. (...) Em contraste com uma estrutura baseada no aspecto frequencial do som, ou seja, na tonalidade, essa estrutura rítmica era tão receptiva a sons não musicais, ruídos, como era a escalas e instrumentos convencionais. Pois nada da estrutura era determinado pelos materiais que iriam ocorrer nela; ela era concebida, na verdade, para que pudesse ser expressa tanto pela ausência como pela presença desses materiais.”

Em alguns dos trabalhos descritos pelo compositor, a sua execução funciona como um jogo, em que características sonoras a serem executadas se alteram, enquanto a estrutura, ou mesmo outras características, se mantêm inauditas, funcionando como uma espécie de jogo entre os músicos/executantes, visto que enquanto uma parte se mantém em um domínio racional, a outra não.

Ao final do raciocínio Cage conclui que o ponto de chegada desse processo foi a reflexão que a estrutura era uma característica não necessária ao fazer musical. Mas esse não é bem o ponto que eu trago.

Recentemente tive notícia de um jogo para computador chamado Hylics, ocasião em que estava sendo anunciada a sua continuação, Hylics 2. Hylics (1 e 2) se caracterizam como um jogo, ou, como o próprio criador, Mason Lindroth, denomina: um “Projeto Recreacional com elementos de JRPG²”.

Elementos esses, que inclusive, tornam esse programa recreacional jogável, visto que, por ter grande parte de seus diálogos gerados aleatoriamente, o que se tem por história são os fragmentos da história de cada um dos quatro protagonistas, e uma viagem à lua para destronar o vilão. No caso, o que se tem por inteligível é a estrutura, os próprios paradigmas de um JRPG, ao caso uma estrutura em que os personagens exploram cavernas, combatem monstros, adquirem recursos, compram itens e se tornam mais fortes.

Nisso, os elementos racionais da experiência do jogo dão suporte a uma das mais surreais experiências visuais e sonoras em um jogo do estilo, ou mesmo em qualquer tipo de jogo. O trabalho de Lindroth é primoroso, tanto nos visuais de mapas, personagens, monstros, cenários, arquiteturas, quanto mesmo na composição do lugar sonoro da trama inteira.

Esse espaço para a exploração de outras fronteiras na elaboração de um programa recreacional, inclusive, é uma exploração semelhante aos processos composicionais de John Cage, conciliando atividades racionais e irracionais, organizados e anárquicos, conscientes e inconscientes.

Neste sentido, tanto no fazer musical quanto mesmo no fazer de um jogo, explorações são possíveis, ao contrário de raciocínios apocalípticos de que tudo que poderia se produzir já fora produzido. Aliás, nas próprias combinações entre as doze notas que compõem a escala cromática ocidental constam combinações que tendem ao infinito. Esta, inclusive é a visão de Page Hamilton, entrevistado por Bernardo Pacheco para a revista +Soma³, citado aqui:

"Eu amo harmonia, todas as suas possibilidades, ouvir as cores, os centros tonais. Por exemplo, como o John Lennon fazia (canta “I’m Only Sleeping”), como a nota da melodia permanece a mesma e os acordes mudam. É como olhar para uma constelação: você vê a de Órion, tem aquela estrela mais forte e a forma como a constelação se relaciona, criando um padrão lindo no céu. É assim que os acordes são pra mim, são formas, e eu sou fascinado pela ideia de que existem possibilidades infinitas para as combinações de doze notas — que é basicamente tudo que temos na música ocidental, essas doze notas e a escala cromática. (Perguntado: É, acho uma asneira completa quando alguém diz coisas como “tudo já foi feito, só resta repetir o que já existe”.) Merda total, uma desculpa preguiçosa."

A relação conceitual entre jogos e o fazer musical é inclusive explorada no livro Música Errante, de Rogério Costa⁴, ao comparar a atuação de um músico em um contexto de improvisação a um jogador de pingue pongue, ou mesmo à prática da música improvisacional a um jogo:

"No livro Experimental Music: Cage and Beyond, Davi Berhman escreve a respeito da interação: a situação do músico pode ser comparada a de um jogador de pingue pongue esperando a rápida resposta de seu oponente: ele sabe o que vem (o serviço) e sabe o que deve fazer quando vem; mas os detalhes de como e quando isso se dá são determinados unicamente no momento de sua ocorrência. Para o historiador Johan Huizinga, o jogo tem importância fundamental e se configura enquanto uma atividade primordial de procedimento vital. Para ele, “O jogo é fato mais antigo que a cultura [...] Na forma e na função do jogo, que em si mesmo é uma entidade independente desprovida de sentido e de racionalidade , a consciência que o homem tem de estar integrado numa ordem cósmica encontra sua expressão primeira [...]. Para Huizinga, o jogo se coloca antes mesmo da linguagem como manifestação pré-significante do vivo: (...) É possível concluir então que, para Huizinga, o jogo está na origem da própria atividade do vivo. É através do jogo que, inicialmente, o vivo se coloca em movimento, se desloca, adquire dinamismo, interage, se acomoda ou se adapta à várias situações reais."

Com isso, o raciocínio, visto que a atividade de criação pode ser, conforme Cage, uma atividade de pura irracionalidade, ou também uma atividade que busca conciliar ocorrências racionais e irracionais, tende, de fato ao infinito, visto que, ainda que as atividades racionais humanas tendam ao finito, isto é, ainda que tudo que possa ser inteligido e paradigmatizado tenda a um espaço finito, toda atividade inconsciente tende ao seu justo contrário.

Em outras palavras, ainda que tudo o que nosso olho possa ver já possa ter sido visto, a atividade artística deve se pautar justamente na busca do invisível, justamente pela subversão de alguma destas características, seja por si, seja aliada a alguma prática inteligível.

Não sei se fez muito sentido, mas, por hoje, é hora de desligar os alarmes, a arte continua infinda.

Hoje eu acordei pensando em “Total Eclipse of The Heart”, terminei o dia escutando Andy Stott.

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¹ CAGE, John. Silêncio; 1. Ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019, p. 19-22.
² JRPG, termo que se refere a um estilo específico de jogos de RPG originários do Japão, os quais têm como principais expoentes as franquias Final Fantasy, Chrono Trigger, dentre outros, se tornando um gênero em si em videogames.
³ Publicado em https://medium.com/@berradoandrea/in-the-meantime-uma-hist%C3%B3ria-do-helmet-e-al%C3%A9m-5ec0468f34e1.
⁴ COSTA, Rogério Luiz Moraes. Música Errante: o jogo da improvisação livre. 1. Ed – São Paulo: Perspectiva, p. 27-28.

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