JANO


são 8h42min e você acorda em uma cama estranha. você que veio do breu e hoje dormiu em uma cama de família, acorda enquanto todos dormem. o que o meu corpo tenta me dizer? eu sou você da frase anterior. carrego o celular. carrego as fúrias nas minhas asas. em outro quarto, em outro lugar, dormem mulheres, homens mortos e suas efígies. desconforto.

em outro momento me perguntaram sobre o meu pai e eu não soube responder. ele se monta em perspectivas de mistério, e tudo sobre ele é mediado. não existe contato, e essa foi uma lição de infância.

são dez quase onze. na sua cidade tem uma casa em que você não entra mais. a memória do seu avô já se encerrou nesta existência. um outro homem que mora ali te odeia e sonha contigo e com todos os signos da morte. você chega em casa, não é sua casa. ela está vazia e você está ali. essa mesma besta te ronda. o teu próprio corpo já não é mais um local de boas vindas.

é algum momento da tarde. eu procuro anotações que não existem. cartas que eu não escrevi. eu anoto: preciso de óculos novos, uma pele nova, um joelho novo, traumas novos, sonhos novos, uma música nova e outras coias que eu sei que não existem. todos os livros são livros do juízo final.

eu canso dos subterrâneos e ascendo. corto a cidade com as fúrias aos ouvidos. as cartas que eu não escrevi, eu escrevo. as músicas existem somente se você as tangencia. o olhar se digladia contra o sol até cansar. os signos persistem. a corda na jaqueira persiste. os afetos se esgotam.

(não impressiona que os antigos considerassem o sol um deus. aqui ele se apresenta por dentro de nuvens, se exibindo com sua luz em um outro tipo de espetáculo, que ainda é banal, mas que ainda cativa)

rodoviária. noite. meu nome é flávio. como carros são vermelhos, rápidos e matam. pra cada verdadeiro de si, existe um falso. não existe casa possível. a sensação é ruim quando, depois de tudo, se visualiza a arquitetura de tanta desgraça. é difícil odiar um irmão. você toma distância e procura três margens. tomo por meu um barco que não existe. faço o caminho todo de volta, volto à casa um, e durmo.

acordei hoje. havia um enorme cachorro ao lado da cama. ele me disse: “o que você quer não existe. as coisas que você quer não existem. o que você quer pra si não existe. a pessoa que você quer ser não existe. o que existe é esse punhal que eu te entrego. aplique-o. se mate e vá embora”. eu preparo meus ouvidos pra ouvir o céu caindo.